sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Monólogo de uma Vítima

Caminho com os pés gelados, quase que a medo, pelo chão. As lágrimas que me cobrem a face brotam como as gotas da chuva incessante que corre lá fora. Elas carregam toda a dor das palavras esquecidas que cobardemente fui incapaz de dizer. São frequentemente abafadas pelo peso que carrego diariamente transformando-as em ecos mudos que só eu consigo ver e decifrar. A boca há muito que aprendeu a ficar calada. Agora é somente usada para fingir sorrisos que parecem contentar os curiosos que me rodeiam quando desconfiam que algo não está "muito certo comigo".
Tantas são as vezes que tenho vontade de lhes gritar, gritar bem alto mostrando-lhes assim toda as angústias que me provocam esta cruz a que me sinto pregada. Em vez disso choro sozinha com receio que alguém veja ou que perceba o que se passa. Já pensei em deixá-lo de vez mas não o posso abandonar porque afinal ele precisa muito
de mim!
Ontem chegou a casa às tantas bêbado e a tresandar a álcool. Quando ouve as reprimendas dos vizinhos grita muito comigo e diz que a culpa é minha. Argumenta várias vezes que se eu fosse boa mulher não existiriam motivos para continuar sentir vontade de beber como faz regularmente. Da última vez que discutimos bateu-me com muita força e fiquei marcada em todo o corpo. Precisei de ir ao hospital mas não fui com medo que me obrigassem a apresentar queixa. Os hematomas sararam mas ainda demoraram várias semanas a passar. Eu sei que ele foi muito mau para mim mas sentia-se tão arrependido que no dia a seguir pediu-me desculpas e até me levou a jantar fora. Ele ama-me eu sei que ama! Só que às vezes é complicado viver com ele ... Dói ser constantemente atormentada por um marido que fica bêbado sempre que vai á tasca e que, quando regressa já desgovemado, vem com vontade de me bater.
No fundo o problema dele é a bebida porque quando está sóbrio não me encosta o
dedo. Já o tentei convencer de que não precisa do álcool para resolver os seus problemas mas ele não me quer ouvir. Até o nosso médico de família procurou que ele aceitasse ajuda especializada mas não quer. Desde que ficou desempregado vivemos às custas da caridade e por isso recebemos semanalmente visitas de assistentes sociais que me costumam fazer companhia quando o meu Amor sai. É com elas que desabafo e, na última visita, expliquei-lhes que o casamento é para toda a vida e que não pretendo abdicar do meu Amor só porque de vez em quando fica com mau feitio.
No entanto já tentaram, ao verem-me com marcas, que apresentasse queixa á PSP ou que me fosse embora e o deixasse. Não! Não o posso deixar sozinho. Seria egoísta da minha parte se abandonar o barco e partir.
As minhas memórias ajudam-me a aguentar e é quando me sinto cansada que relembro com saudade os tempos da nossa juventude! Penso na altura em que éramos jovens e felizes e o vício ainda não assombrava a nossa casa. Ele tratava-me como uma princesa e sempre fora muito carinhoso até termos decidido casar. Durante o primeiro ano senti que estava a viver um conto de fadas até ao dia em que começaram os ciúmes e as desconfianças. Aos poucos cedia nas discussões e progressivamente cingia-me às regras que ele ia criando só para mim. No fundo desejava apenas que regressássemos á normalidade do início mas tudo se transformou quando ele um dia chegou a casa irritado e me deu uma chapada.
Recordo-me bem do dia em que pela primeira vez me encostou a mão ... Por descuido tinha deixado queimar a comida e como entendeu que não estava a cumprir a minha obrigação acusou-me de não o querer mais casado comigo, que estava a fazer tudo para o envenenar e que tinha um amante. Tentei negar tudo e procurei chama-lo á razão ... Na altura doeram-me mais as acusações do que a chapada em si. Perdoei-o claro, ele estava arrependido e prometeu-me que nunca mais tal voltaria a acontecer.
Assim vivemos aqueles que foram os tempos mais felizes do nosso casamento até que por fim se refugiou na bebida. Contudo ele é um bom homem porque sempre que procede mal comigo cai em si e corre a pedir perdão!
Hoje voltou a pedir-me desculpas. Ontem á noite deu-me uma valente tareia e desta vez foi bem pior porque fiquei num tal estado que não posso sair á rua. Pensei em fugir mas ele de manhã parecia tão sincero quando se ajoelhou aos meus pés arrependido ... Mais uma vez não me consegui libertar e perdoei-lhe tudo que me fez.
Que posso eu fazer para acabar com este sofrimento que não tem fim? Estou tão cansada deste corpo dorido que não quer sarar, desta vida medíocre que não me quer dar motivos para sorrir. Já não sei como hei-de agir perante o meu Amor, nem como dedicar-lhe mais vida do que toda a que lhe ofereci.
Há pouco reparei que no wc acima do armário do meu marido, estão uns comprimidos fortes que ele usa para dormir. Está lá uma boa quantidade ... Talvez seja esta a resposta, talvez assim chegue o fim de anos duros de luta por um amor que parece não ter fim. Ainda te amo tanto, tanto mas preciso de te deixar uns tempos sozinho.
Chegou a hora de seguir um caminho diferente daquele que traças-te para mim. Pela primeira vez na minha vida quero ser eu a tomar as direcções e a ditar as minhas próprias regras. Espero que sejas muito feliz, meu Amor, inteiramente mais do que eu.
Vou para perto de Deus e assim ficar em paz a descansar. Já engoli todos os comprimidos e caminho para longe, bem longe daqui. Consigo ver os anjos que carinhosamente me dão o braço para me levar. Eu vou com eles, meu Amor, ser eternamente feliz, a voar!


Deixo claro que esta história é puramente fictícia e portanto não é baseada em factos reais.

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